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A transição da indústria brasileira para veículos elétricos e seus efeitos em emprego e renda
A transição da frota brasileira para veículos elétricos (VEs) tem o potencial de promover o desenvolvimento de uma nova indústria nacional, tanto na montagem final dos veículos quanto na produção de baterias, além de reduções expressivas das emissões de gases de efeito estufa no setor de transportes. Instituída pela Lei № 14.902, de junho de 2024, o Programa Mobilidade Verde e Inovação (MOVER), que regulamenta emissões e estabelece incentivos para a produção de veículos de novas tecnologias e baixas emissões, desencadeou uma rodada de investimentos anunciados sem precedentes na indústria automotiva brasileira. Dado o histórico de produção brasileira de biocombustíveis, que representam uma das principais fontes de energia para os veículos a combustão no Brasil, o MOVER permite vislumbrar uma descarbonização do transporte rodoviário fundamentada na coexistência de duas alternativas: VEs e biocombustíveis.
O desenvolvimento de uma indústria nacional de VEs depende da sua capacidade de gerar novos empregos de qualidade, e de fomentar a expansão de uma indústria nacional para seus principais componentes, como motores elétricos e baterias. No entanto, avaliar o potencial de geração de empregos e renda da produção de veículos elétricos é complexo e requer uma análise abrangente. Análises com recortes setoriais específicos, considerando apenas a produção de veículos e autopeças, por exemplo, ignoram que a ampla maioria dos empregos advém das alterações produzidas pela demanda por veículos em toda a estrutura produtiva da economia. Ou seja, os impactos econômicos dependem tanto da produção direta de veículos quanto dos setores (como autopeças e pneus) que fornecem insumos diretamente para a cadeia de valor automotiva, além dos setores que fornecem bens e serviços para estes últimos. Por exemplo, a venda de um veículo elétrico requer a produção de baterias, que por sua vez demanda tanto serviços de pesquisa e desenvolvimento quanto matérias primas.
Reconhecendo essas particularidades, este trabalho desenvolve dois cenários distintos para a evolução da frota nacional de veículos até 2050. Procura-se comparar os efeitos, sobre os níveis de emprego e renda, de um aumento ambicioso de VEs (cenário Eletrificação) com um cenário no qual os veículos a combustão dominam as vendas até 2050 (cenário Base). Os dois cenários consideram a produção de veículos leves e pesados, divididos em cinco segmentos: carros de passeio, veículos comerciais leves, caminhões médios, caminhões pesados e ônibus.
Para estimar as consequências econômicas da remodelação da frota de veículos, optouse pelo emprego de uma metodologia específica—a análise de insumo-produto—que permite observar os vínculos entre todos os setores de uma economia e identificar os impactos de potenciais alterações em sua estrutura. Em particular, optou-se pela inclusão de um setor sintético na matriz de insumo-produto brasileira representativo da indústria de VEs, que é construído de forma a especificar os bens e serviços demandados para sua produção. Este setor sintético viabiliza uma avaliação dos efeitos gerados por alterações na demanda pelos seus bens finais, VEs leves e pesados.
Este trabalho avalia os impactos em emprego e renda da produção de veículos elétricos e a combustão, assim como do consumo de combustíveis fósseis,
biocombustíveis e eletricidade. Para fazer isso, a evolução estimada das vendas de veículos produzidos no Brasil e da demanda por combustíveis e eletricidade é convertida em valor e utilizada para projetar o valor bruto da produção, o valor adicionado (a soma de salários e lucros) e a quantidade de novos postos de trabalho criados entre 2019 e 2050 nos cenários Base e Eletrificação. Estão além do escopo desta análise empregos ligados à manutenção de veículos, à produção de peças de reposição e à infraestrutura elétrica de distribuição e recarga para VEs.
A Figura ES1 sumariza os principais resultados. O painel da esquerda apresenta a evolução do total de novos empregos potencialmente gerados em função das vendas de VEs, combustíveis e eletricidade nos cenários Base (marrom) e Eletrificação (azul). Os dois painéis à direita resumem a distribuição do total de empregos nos dois cenários ao final das simulações (em 2050) por setor e por gênero, respectivamente.
Figura ES1. Evolução e distribuição dos empregos gerados nos cenários Base e Eletrificação

Os resultados mostram que, assumindo que a produtividade do trabalho e a tecnologia permanecem fixas, o cenário Eletrificação seria responsável por gerar
mais do que o dobro de novos empregos do que o cenário Base em 2050, graças à metas mais ambiciosas. Este potencial de geração de empregos se deve a um aumento da demanda agregada, que decorre do crescimento das vendas de veículos elétricos a bateria e da expansão do grau de produção nacional de baterias automotivas. O cenário Eletrificação projeta uma notável expansão dos empregos industriais, tanto na manufatura de VEs como na indústria de transformação, com destaque para o setor de máquinas e equipamentos elétricos, que inclui as baterias e componentes do powertrain elétrico. Por outro lado, o mesmo cenário estima uma redução absoluta de empregos na produção de veículos a combustão e uma redução relativa em autopeças, comparado ao cenário Base. Também são estimadas reduções relativas moderadas nos setores de combustíveis, biocombustíveis e agropecuária. A maior geração de empregos nos dois cenários se concentra entre os serviços, categoria composta por 23 setores relativamente intensivos em mão de obra que, em conjunto, correspondiam por 64% dos empregos nacionais ao início das simulações (2019).
Em ambos os cenários, assumindo que a atual distribuição de empregos por gênero em cada um dos setores permanece fixa até 2050, cerca de dois terços dos novos postos de trabalho seriam ocupados por homens, uma distribuição por gênero mais desigual do que a verificada para o total da economia brasileira em 2019, quando homens ocupavam 60% dos empregos. Esta desigualdade se deve principalmente à expansão de setores que atualmente empregam majoritariamente homens, como produção de veículos elétricos e a combustão (89% da força de trabalho masculina), transportes terrestres (83%), manufatura de equipamentos elétricos (71%) e outros tipos de manufatura (70%).
As simulações também avaliaram a mudança da distribuição da renda gerada, distribuída entre salários e lucros. A parcela de salários na renda gerada é maior no cenário Eletrificação (53%) do que no cenário Base (45%), uma vez que a expansão da produção de VEs resulta em uma maior demanda por bens e serviços de setores com salários maiores e taxas de lucro relativamente menores.
A competitividade internacional da indústria automotiva nacional também desempenha um papel chave, verificado a partir de uma análise de sensibilidade dos resultados. Ao reproduzir uma trajetória decrescente das exportações no cenário Eletrificação igual àquela assumida no cenário Base, o número de empregos gerados no cenário Eletrificação se reduz em 14% para 2050. Tal contração faz com que o montante de novos empregos gerados no cenário Eletrificação só ultrapasse o do cenário Base após 2032. Ainda assim, o saldo final é de 88% mais empregos para o cenário Eletrificação em comparação ao cenário Base ao se considerar uma queda nas exportações.
Tendo em vista o contexto atual da indústria automotiva nacional, bem como seu posicionamento na transição global para veículos zero emissão, esta análise sustenta as seguintes conclusões:
Estabelecer metas corporativas de redução de emissões veiculares mais ambiciosas e introduzir de políticas industriais para desenvolver a capacidade de produção nacional de componentes-chave, especialmente baterias, poderiam fazer parte de um mix de políticas eficaz para apoiar a produção de veículos elétricos. O novo programa MOVER apresenta oportunidades para estabelecer metas corporativas ambiciosas de redução de emissões veiculares e estimular a indústria brasileira de VEs. Determinar metas de redução de emissões mais ambiciosas do que as implementadas no último ciclo do programa Rota 2030 tem o potencial de direcionar investimentos para veículos elétricos a bateria. Por sua vez, o aumento da escala das vendas e produção nacional de elétricos pode viabilizar a produção competitiva dos principais componentes do powertrain elétrico, principalmente das baterias, aumentando o conteúdo doméstico destes veículos.
Reforçar políticas de fomento a exportações para alavancar o potencial de produção de veículos de baixa emissão no Brasil pode ajudar a mitigar os impactos da transição sobre as exportações e fortalecer a competividade do Brasil no longo prazo. Os objetivos de eletrificação das frotas de alguns dos principais importadores de veículos nacionais põe em risco as exportações brasileiras atuais, de veículos a combustão. Por outro lado, a intensificação da demanda por elétricos na América Latina, bem como a disponibilidade de lítio e outras matérias primas na região, podem beneficiar as exportações brasileiras, principalmente para mercados que não possuem indústrias automotivas desenvolvidas. O governo pode considerar instrumentos de financiamento de exportações (trade finance), incentivos fiscais à exportação e assistência financeira em mercados estrangeiros. Em contrapartida, a produção exclusiva de veículos a combustão ou o início tardio da produção nacional de elétricos e baterias pode resultar na perda de mercados internacionais, no aprofundamento
da tendência atual de aumento do conteúdo importado nos veículos nacionais e até no aumento das importações de veículos. No caso brasileiro, tais processos podem implicar uma deterioração da posição do país em relação à balança comercial de importantes economias parceiras na América Latina.
Se a promoção da paridade de gênero na transição para os VEs é um objetivo do governo, programas de capacitação e inclusão profissional, com foco particular na força de trabalho feminina, poderiam ajudar a evitar o agravamento do diferencial salarial existente entre homens e mulheres neste e em outros setores. A remodelação da frota brasileira terá implicações na equidade de gênero nos setores diretamente e indiretamente envolvidos na produção de veículos. Antecipar os impactos de gênero da transição será fundamental para o desenho de políticas públicas gênero-inclusivas destinadas a garantir que o desenvolvimento da indústria de veículos elétricos no Brasil não seja responsável por produzir novas desigualdades no mercado de trabalho ou reproduzir aquelas já existentes, e para a promoção de uma maior inclusão de gênero no mercado de trabalho brasileiro.
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Methodological Appendix