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Prontos, mas não tão dispostos: fabricantes globais de veículos querem reverter a Euro VI na América Latina

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Na semana passada, fabricantes globais de automóveis conseguiram reverter a NOM-044, importante norma mexicana sobre emissões veiculares equivalente à Euro VI. Essa norma exige que os novos caminhões e ônibus sejam drasticamente mais limpos. O México agora terá de esperar pelo menos mais um ano por veículos mais limpos que salvarão milhares de vidas e ajudarão a Cidade do México a evitar dispendiosas medidas emergenciais ambientais que mantêm carros e caminhões fora das ruas.

Infelizmente, isso não é tudo. Os fabricantes estão pedindo que os governos do México e do Brasil adiem por mais vários anos essas regulamentações que salvam vidas. Eles reconhecem que as tecnologias Euro VI, comercialmente difundidas há mais de uma década, oferecem reduções reais de 98% a 99% de material particulado e óxidos de nitrogênio (NOx), para além da economia de combustível… só que fora da América Latina. Há alegações de que é muito caro, de que o mercado não está pronto, e agora a COVID-19.

No ICCT, já escrevemos muitas vezes sobre o quanto essas regulamentações da Euro VI/EPA 2010 são essenciais – como elas resolvem lacunas na Euro V para reduzir as emissões reais de NOx em 98%, como elas praticamente eliminam as emissões de partículas, como elas devem salvar mais de 100 mil vidas nas próximas décadas no Brasil e no México e como podem poupar dinheiro com uma melhor economia de combustível. Recentemente, publicamos um post de blog em português e realizamos um webinar em espanhol sobre a importância de implementar esses padrões conforme o programado.

O que mais posso dizer? Bem, bastante coisa.

Alguns na indústria argumentam que a Euro VI vai aumentar o custo de caminhões e ônibus, mas vamos olhar para a história. Os fabricantes foram multados no valor recorde de 2,9 bilhões de euros pela Comissão Europeia após admitirem a prática de cartel em uma bonificação de 10 mil euros pela Euro VI. Independente do fato de que a bonificação correspondia a cerca de cinco vezes nossa estimativa do custo real, importa lembrar que preço é uma questão totalmente diferente de custo. Por exemplo, um contrato de agosto de 2019 para 30 novos ônibus Euro VI de piso baixo na Cidade do México teve um preço por veículo 7% menor que o do contrato de março de 2019 para 70 novos ônibus de piso baixo Euro V.

Enquanto os materiais de marketing dos fabricantes tendem a apresentar um futuro promissor relacionado à economia de combustível na Europa, esses benefícios tendem a ser minimizados na América Latina. Os dados são um tanto escassos, mas um estudo testou modelos de veículos Euro V e Euro VI de sete fabricantes europeus em 2010 e 2016. Conforme mostrado na figura a seguir, a potência aumentou em todos os modelos Euro VI e o consumo de combustível foi reduzido em todos, exceto um. Cinco dos modelos Euro VI reduziram o consumo de combustível e ureia em 10% a 12% e um em 5%. Isso corresponde às reduções de consumo de combustível dos motores Euro VI na Índia, determinadas em 7% a 14%.

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Figura 1. Mudanças percentuais no consumo de combustível e combustível + ureia e potência disponível do motor para sete fabricantes europeus entre os mesmos modelos ou modelos similares de 2010 (Euro V) e 2016 (Euro VI).

Caso você esteja se perguntando, sim, a Índia conseguiu implementar padrões equivalentes à Euro VI em abril de 2020, em meio a uma pandemia global e sem atraso significativo. O México e o Brasil têm PIB per capita quatro a cinco vezes maior que o da Índia e seus mercados são dominados por empresas internacionais com mais de uma década de experiência com a Euro VI. Na Índia, fabricantes locais sem essa experiência implementaram esses padrões em pouco mais de três anos. Na China, dominada por fabricantes locais e joint ventures e dotada de um PIB semelhante ao do México, a implementação de padrões equivalentes à Euro VI está prevista para o ano que vem. Nenhum adiamento foi solicitado.

No México, outra desculpa para a postergação é que a PEMEX não cumpriu totalmente os padrões de qualidade de combustível. Isso vem acontecendo há mais de uma década, e o plano mais recente é ter 100% de diesel com teor ultrabaixo de enxofre em 2025. Por mais frustrantes que sejam esses atrasos, mais de 80% do combustível vendido atualmente atende aos padrões de enxofre ultrabaixo, e ambos Estados Unidos e Brasil são exemplos de sucesso de distribuição de combustível duplo. O México tem seu próprio precedente com a introdução gradual de combustível sem chumbo e catalisadores de três vias. Certamente, esses exemplos oferecem uma alternativa melhor que a introdução de outros 160 mil caminhões e ônibus altamente poluentes (presumindo vendas anuais estáveis no México ao longo de quatro anos de adiamento), os quais permaneceriam circulando por décadas.

Enquanto isso, a COVID-19 é a principal desculpa dos fabricantes que buscam postergar as regulamentações do PROCONVE 8 no Brasil. Como no México, as vendas de caminhões pesados no Brasil caíram durante o lockdown, mas se recuperaram, e não me parece claro como essa breve queda na produção e nas vendas se traduz em três anos de adiamento. Além disso, embora uma recessão relacionada à COVID-19 possa levar a quedas nas vendas e perdas de emprego, por que as regulamentações da Euro VI necessariamente piorariam esse cenário? Os investimentos em manufatura estão em andamento, os modelos Euro VI já estão disponíveis no México e no Brasil e, embora uma transição regulatória em geral seja acompanhada por uma queda temporária nas vendas, isso é mais do que compensado por compras antecipadas.

Estudo após estudo vem mostrando que a poluição do ar aumenta o risco de morte por COVID-19. Como dois dos países mais afetados do mundo, você pode imaginar como esse novo contexto amplifica o valor dessas regulamentações no México e no Brasil, em vez de servir como desculpa para atrasar sua implementação.

Enquanto observamos as diferentes reações mundiais à COVID-19, o ritmo da crise climática acelerou no meu canto do mundo, a área da baía de São Francisco. Por anos, lamentei como o impacto da seca e a infestação dos besouros por conta do clima coloriram de marrom as Sierras, com mais de 100 milhões de árvores mortas, posicionadas como palitos de fósforo prontos para queimar. Presa em casa com as janelas fechadas para impedir a entrada de fumaça e com meu escritório a 43° C, eu tinha receio de que as ondas de calor, mais intensas a cada ano, e a atmosfera seca acabariam com nosso sistema de ar-condicionado natural, a névoa. De alguma forma, eu já esperava ver os pássaros caindo mortos do céu. Mas, como nosso ex-governador, Jerry Brown, estou surpresa com o quão ruim a situação ficou, e o quão rápido.

O pensamento mágico não nos salvará, mas a NOM-044 e o PROCONVE 8 salvarão vidas no México e no Brasil e ajudarão a desacelerar a mudança climática. Pessoas estão morrendo e o mundo está em chamas – não podemos mais esperar. Evidentemente, há mais a ser feito; sempre existe. Mas podemos começar por não destruir o progresso já alcançado.