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Os riscos da aposta em carros híbridos plug-in flex-fuel no Brasil

À medida que os maiores mercados de veículos do mundo optam por veículos elétricos para descarbonizar o transporte rodoviário, algumas das maiores montadoras tradicionais do Brasil reforçam suas apostas nos biocombustíveis, com planos de utilizá-los em veículos híbridos plug-in (PHEVs, do inglês plug-in hybrid electric vehicles) como alternativa aos veículos elétricos a bateria (BEVs, do inglês battery electric vehicles). Além disso, o novo programa de regulação de emissões de veículos do Brasil (MOVER) oferecerá descontos fiscais (até 2026) exclusivos para veículos híbridos maiores do que os descontos concedidos para veículos que atingirem as metas de eficiência energética. Embora estes incentivos estejam vinculados a possíveis benefícios ambientais, pesquisas do ICCT mostram que a adoção de PHEVs têm riscos climáticos que poderiam comprometer a meta do país de atingir a neutralidade climática até 2050

Nossa análise mostra que os PHEVs flex têm menor potencial de mitigação de emissões de gases de efeito estufa (GEE) do que os BEVs. O mesmo vale para veículos elétricos híbridos que não são plug-in (HEVs, do inglês hybrid electric vehicles). Para os HEVs, as emissões estimadas ao longo do ciclo de vida são mais altas do que as dos PHEVs, quando ambos utilizam os mesmos combustíveis. 

A Figura 1 destaca os resultados da nossa avaliação do ciclo de vida em carros de passeio no Brasil. Ela compara veículos de motor de combustão interna do segmento médio (ICEVs, do inglês internal combustion engine vehicles), PHEVs e BEVs vendidos em 2023 (à esquerda) e os veículos projetados para serem vendidos em 2030 (à direita). Para ICEVs e PHEVs, as três fileiras representam, de cima para baixo, carros operados com (a) 100% de gasolina C (E27), (b) a média de mercado de gasolina C (E27) e etanol, e (c) 100% de etanol (E100). A análise não considerou PHEVs flex vendidos em 2023 porque nenhum modelo estava disponível no mercado. As emissões provenientes da produção de eletricidade para BEVs e PHEVs foram calculadas usando as emissões atuais e projetadas da matriz elétrica nacional, incluindo as emissões de construção de usinas de geração elétricas e perdas de transmissão, distribuição e carregamento. 

Figura 1. Emissões estimadas de gases de efeito estufa no ciclo de vida para veículos de segmento médio com motores a combustão interna (ICEVs), veículos híbridos plug-in (PHEVs) e veículos elétricos a bateria (BEVs) no Brasil, para modelos vendidos em 2023 e modelos projetados para serem vendidos em 2030. As três fileiras de barras para ICEVs e PHEVs representam, de cima para baixo, veículos operados com (a) 100% de gasolina C (E27), (b) a média de vendas de gasolina C e etanol, e (c) 100% etanol (E100). Para BEVs e PHEVs, as emissões de produção de eletricidade correspondem a matriz elétrica nacional. Fonte: Mera et al. (2023)

Para os modelos de 2023, as emissões estimadas dos PHEVs são 20% menores do que as emissões dos ICEVs quando ambos utilizam exclusivamente gasolina C. No entanto, quando comparadas aos ICEVs que utilizam a média de mercado de gasolina e etanol no Brasil, as emissões dos PHEVs atuais são apenas 3% menores. ICEVs operando exclusivamente com etanol tem emissões estimadas no ciclo de vida menores do que os PHEVs a gasolina. Em contraste, os BEVs atuais têm estimativas de emissões ao longo do ciclo de vida que são 66% abaixo dos ICEVs com consumo médio de gasolina-etanol no mercado e 65% menos do que os PHEVs atuais a gasolina.

Para os PHEVs flex projetados para 2030, usando a mistura média de mercado de gasolina e etanol, as emissões estimadas no ciclo de vida são 17% menores, em comparação com ICEVs. As emissões dos PHEVs que utilizam 100% etanol, assumindo uma parcela de condução no modo elétrico otimista de 55%; são estimadas em 87 gCO2eq/km. Este valor corresponde ao dobro das emissões estimadas no ciclo de vida de um BEV do mesmo segmento.

Esses resultados põem em xeque os benefícios climáticos dos PHEVs flex no Brasil. E tem mais.

Estudos do ICCT sobre o uso real de dezenas de milhares de PHEVs na Europa e nos Estados Unidos mostraram que, em média, os proprietários de PHEVs utilizaram o modo de condução elétricas menos do que os reguladores assumiam. Na Europa, para veículos com uma autonomia elétrica de 40 km a 75 km, os valores aprovados oficialmente assumiam parcela de condução elétrica de 70% a 85%. Na operação real, no entanto, a parcela média de condução elétrica medida foi de 45% a 49% para carros particulares e cerca de 11% a 15% para carros de empresa. Portanto, o consumo real de combustível dos PHEVs foi em média três a cinco vezes maior para carros particulares e carros de empresa, respectivamente, do que os valores oficiais. Nos Estados Unidos, a parcela verificada de condução elétrica foi de 26% a 56% menor do que o assumido pelo programa de etiquetagem da Agência de Proteção Ambiental, contribuindo para um consumo real de combustível, em média, de 42% a 67% maior. Outros estudos também identificaram diferenças significativas entre a parcela de condução elétrica de PHEVs em situações reais em comparação com testes. Isso levou, em 2023, a Comissão Europeia a reduzir e a Agência de Proteção Ambiental dos EUA propor a redução da parcela assumida de condução elétrica, aproximando os valores de etiquetagem do uso real.

Pode-se esperar resultados semelhantes no uso real de PHEVs no Brasil? Sim. A Figura 2 mostra os 10 PHEVs mais vendidos no Brasil durante o primeiro semestre de 2023 e inclui a capacidade da bateria (eixo x) e a autonomia elétrica (eixo y), sendo esta última calculada considerando uma redução de 30% nos valores de testes para refletir a autonomia real. O tamanho das bolhas corresponde às vendas.

Figura 2. Capacidade da bateria e autonomia elétrica dos 10 PHEVs mais vendidos no primeiro semestre de 2023 no Brasil. Fonte: ABVE, dez PHEVs mais vendidos entre janeiro e junho de 2023. 

A autonomia média desses veículos, em sua maioria SUVs grandes importados, é de 44 km. Esse valor é semelhante à autonomia média dos PHEVs na Europa e nos Estados Unidos. Essa autonomia é suficiente para a maioria das viagens urbanas, mas seriam necessárias recargas frequentes, o que poderia favorecer o uso de motores a combustão. De fato, como há menos pontos de carregamento no Brasil, é improvável que os PHEVs vendidos nacionalmente alcancem uma parcela de condução elétrica maior do que a observada na Europa e nos Estados Unidos, ao menos no curto prazo. 

Algumas políticas poderiam aumentar a parcela de condução elétrica dos PHEVs, como estabelecer um tamanho máximo dos tanques de combustível e uma autonomia elétrica mínima, exigir o fornecimento e instalação de carregadores domésticos na compra de veículos PHEVs e vincular incentivos fiscais ao consumo real de combustível e emissões. Mas mesmo assim, a escolha de abastecer um carro flex com gasolina ou etanol determina suas emissões. Em 2020, o etanol hidratado (E100) representou 35% (em volume) das vendas totais de combustíveis para veículos leves de ciclo Otto no Brasil. No total, o etanol hidratado e anidro representaram 52% da demanda nacional, em volume, em 2020 e cerca de um terço dela em energia. A gasolina C (E27), uma mistura de 27% de etanol anidro e 73% de gasolina. Isso significa que apenas um terço da demanda de combustível da frota nacional de carros de passeio foi suprida pelo etanol hidratado (E100). Mais de 75% da frota nacional de carros e 92% daqueles vendidos após 2013 são carros flex e poderiam ser abastecidos exclusivamente com etanol. No entanto, nos últimos anos, o consumo de etanol estagnou enquanto as vendas de gasolina aumentaram. 

Como tudo isso mostra, os PHEVs flex impõe limites às ambições climáticas do Brasil. Mesmo a disponibilidade de PHEVs flex ainda não está garantida, especialmente para modelos menores e mais baratos. Espera-se que apenas alguns modelos de PHEVs sejam produzidos domesticamente nos próximos anos e estes são SUVs de luxo. Incentivos governamentais favorecendo PHEVs flex para a descarbonização do transporte, como os anunciados no novo programa MOVER, podem resultar em limitadas reduções de emissões se os PHEVs tiverem uma baixa parcela real de condução elétrica. Isso poderia, por sua vez, exigir ações mais abruptas para descarbonizar a frota de veículos do país em um período mais curto no futuro para atingir as metas climáticas anunciadas para 2050. Políticas públicas eficazes para a descarbonização do transporte devem diferenciar incentivos com base em emissões reais, e os dados apontam um potencial de mitigação muito maior em BEVs do que os PHEVs. 

Author

André Cieplinski
Researcher

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